quarta-feira, 29 de setembro de 2010


EXALTAÇÃO
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Venha!
Venha uma pura alegria
Que não tenha
Nem a senha
Nem o dia!
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Abra-se a porta da vida
Sem se perguntar quem é!
E cada qual que decida
Se quer a alma aquecida
No lume da nova fé.
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Venha!
Venha um sol que ninguém tenha
No seu coração gelado!
Venha
Uma fogueira de lenha
De todo o tempo passado!
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Miguel Torga

A ventania
Assovia o vento dentro de mim
Estou despido
Dono de nada
Dono de ninguém
Nem dono de minhas certezas
Sou minha cara contra o vento
A contra-vento
E sou o vento
Que bate em minha cara
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Eduardo Galeano

AS ESTRELAS
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Nós seguimos as estrelas
Porque elas nos pertencem.
Mas onde iremos com as estrelas?
Num caminho de sonhos e impossibilidades.
Mas mesmo nas impossibilidades
Ainda podemos sonhar.
Se é amor o que nos machuca,
Que pelo menos ele seja sublime.
Que seja amor ou paixão,
Que seja verdadeiro.
Que ele queime
Tanto que queimam nossas almas,
Tanto que não sabemos
O que nos reservam as estrelas.
.
Mas, se eu pergunto às estrelas,
De que será feito o amanhã,
Elas não respondem nada,
Elas não sabem nada,
Elas só sabem brilhar,
Elas só sabem nos iluminar.
Porque nós também não sabemos
De que o amanhã será feito.
Talvez a gente se acorde...
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© Letícia Thompson

ME ABRACE
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Me abrace
Um abraço daquele apertado
Como se fosse o único
Abraço bem dado
Abraço com fervor
Me abrace por favor
.
Me abrace
Eu fico quietinho e calado
Só sentindo o seu calor
Mas me abrace por favor
.
Me abrace
Me deixa ficar entre seus braços
Preso nos seus laços
Um abraço forte
Que espanta até a morte
.
Me abrace
Esqueça que é minha paixão
Deixa eu escutar seu coração
Bater perto do meu
.
Me abrace
Não digo nada e não falo de amor
Simplesmente me abrace
E deixa eu me perder entre seus braços
No calor do seu abraço
Me abrace por favor!
.
Jorge Luiz Vargas

Abre-te primavera!
Tenho um poema à espera
Do teu sorriso.
Um poema indeciso
Entre a coragem e a covardia.
Um poema de lírica alegria
Refreada,
A temer ser tardia
E ser antecipada.
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Dantes, nascias
Quando eu te anunciava.
Cantava,
E no meu canto acontecias
Como o tempo depois te confirmava.
Cada verso era a flor que prometias
No futuro sonhado...
Agora, a lei é outra: principias,
E só então eu canto confiado.
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Miguel Torga

“Em minhas andanças,
eu quase nunca soube se
estava fugindo de alguma coisa
ou caçando outra”.
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Rubem Braga

Aqui, a Primavera começa hoje.
Depois do Inverno, morte figurada,
A primavera, uma assunção de flores.
A vida
Renascida
E celebrada
Num festival de pétalas e cores.
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Miguel Torga

MAR DE MENINA
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Havia um mar,
e ali brotava uma ilha
povoada de lobos e de pensamentos.
Havia um fundo escuro e belo
onde os náufragos dançavam com sereias.
Havia ansiedade e abraço.
Havia âncora e vaguidão.
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Brinquei com peixes e anjos,
fui menina e fui rainha,
acompanhada e largada,
sempre a meia altura
do chão.
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A vida um barco, remos ou ventos,
tudo real e tudo
ilusão.
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Lya Luft

Quando eu ando assim
meio fora de mim
percorro lugares
navego por mares
me sinto perdido
me encontro sofrido
me sinto no ar.
Me prendo às mazelas
evito as janelas
não quero saltar
.
Guto Oliveira

Suspiro tanto quando penso em você,
chorar só choro às vezes, e é tão freqüente.
Caminho mais devagar,
certa que na próxima esquina,
quem sabe.
Não tenho tido muito tempo ultimamente
mas penso tanto em você
que na hora de dormir vez enquando até sorrio
e fico passando a ponta do meu dedo
no lóbulo da sua orelha e repito repito
em voz baixa te amo tanto dorme com os anjos
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Caio Fernando Abreu

Acolhe-me em teu abraço,
com teu olhar me afirma:
aquele espaço a teu lado
é o porto da minha viagem,
meu lado de rio, minha margem.
Abriga-me no teu corpo
para que o meu se desdobre
em onda de mar ou concha.
Aceita-me e me recria
como nem eu me conheço:
em ti parece que chego
como uma coisa concreta,
algo que avança e se adianta,
e só assim se desdobra,
pois antes era miragem.
Recebe-me em duas partes:
aquela que o mundo avista,
e a outra, a verdadeira,
chão de tua sombra que passa,
e da tua luz que se planta.
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Lya Luft

Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!
E se um dia hei-de ser pó,cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder… pra me encontrar…
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Florbela Espanca

Deixaria neste livro
toda a minha alma.
Este livro que viu
as paisagens comigo
e viveu horas santas.
Que pena dos livros
que nos enchem as mãos
de rosas e de estrelas
e lentamente passam!
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Federico Garcia Lorca

Poeta tem mão de fada.
Quando ele escreve a caneta
voa que nem borboleta,
vira vareta encantada,
Não é mais caneta, não,
é varinha de condão.
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Leo Cunha

CAIXINHA DE MÚSICA
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Firu-liru-lim ...
Melodiosa filigrana
que uma bailarina
tece em gestos delicados
de porcelana e marfim.
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Helena Kolody

RUA
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A rua mastiga
os homens:
mandíbulas
de asfalto,
argamassa,
cimento,
pedra e aço.
A rua deglute
os homens:
e nutre
com eles seu sôfrego
onívoro esôfago.
A rua dejeta
os homens:
o poeta,
o agiota,
o larápio,
o bêbado
e o sábio.
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Guilherme de Almeida

Meu livro é um jardim
na doçura do Outono
E que a sombra amacia
De carinho e de afago
Da luz serena do final do dia
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Mario Pederneiras

AO LONGE, AO LUAR
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Ao longe, ao luar,
No rio uma vela,
Serena a passar,
Que é que me revela ?
Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.
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Que angústia me enlaça ?
Que amor não se explica ?
É a vela que passa
Na noite que fica.
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Fernando Pessoa

SEGREDO
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Esta noite morri muitas vezes, à espera
de um sonho que viesse de repente
e às escuras dançasse com a minha alma
enquanto fosses tu a conduzir
o seu ritmo assombrado nas trevas do corpo,
toda a espiral das horas que se erguessem
no poço dos sentidos. Quem és tu,
promessa imaginária que me ensina
a decifrar as intenções do vento,
a música da chuva nas janelas
sob o frio de fevereiro? O amor
ofereceu-me o teu rosto absoluto,
projectou os teus olhos no meu céu
e segreda-me agora uma palavra:
o teu nome - essa última fala da última
estrela quase a morrer
pouco a pouco embebida no meu próprio sangue
e o meu sangue à procura do teu coração.
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Fernando Pinto do Amaral

AO LUAR
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Quando, à noite, o Infinito se levanta
A luz do luar, pelos caminhos quedos
Minha tactil intensidade é tanta
Que eu sinto a alma do Cosmos nos meus dedos!
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Quebro a custódia dos sentidos tredos
E a minha mão, dona, por fim, de quanta
Grandeza o Orbe estrangula em seus segredos,
Todas as coisas íntimas suplanta!
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Penetro, agarro, ausculto, apreendo, invado,
Nos paroxismos da hiperestesia,
O Infinitésimo e o Indeterminado...
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Transponho ousadamente o átomo rude
E, transmudado em rutilância fria,
Encho o Espaço com a minha plenitude!
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Augusto dos Anjos

LEGENDA
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Nada garante que tu existas
Não acredito que tu existas
Só necessito que tu existas
.
David Mourão Ferreira

O ARTISTA INCONFESSÁVEL
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Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre o fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificilmente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.
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João Cabral de Melo Neto

As folhas da bananeira são suficientemente amplas
para ocultarem uma paixão.
Quando expostas às intempéries
recordam-me ora a cauda ferida duma fénix
ora um leque verde rasgado pelo vento.
A bananeira floresce.
Todavia as suas flores nada têm de atraente.
O mesmo acontece com o tronco enorme.
Talvez por isso
a bananeira acabou por conquistar o meu coração.
Sento-me debaixo dela
enquanto o vento e a chuva a fustigam.
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Matsuo Bashô

"O seu mais leve olhar vai me fazer, facilmente,
desabrochar apesar de eu ter me fechado como um punho cerrado,
você me abre sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando de leve, misteriosamente)
sua primeira rosa".
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Cummings

... Dá-me tua mão
E eu te levarei...
Nada te perguntarei,
Apenas ouvirás...
... as palavras do meu olhar
sobre tua face muito amada.
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Adalgisa Nery

Ao dizer que te amo é
como se as portas da vida se
abrissem, e uma luz nascida de dentro
do desejo de ti me trouxesse
até mim. Mas ao dizer
que te amo, são as portas
da noite que se fecham, e é
contigo que espero a última
madrugada, onde entre
mim e ti
nenhumas portas existam.
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Nuno Júdice

MUDANÇAS
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Tudo nos modifica.
O livro que se lê.
Um quadro que se vê.
A música que se escuta.
Uma palavra ao léu.
Também uma confidência.
O que dói em nós e nos outros.
O que acontece no mundo.
Quem pode manter-se o mesmo?
Afinal, quem somos mesmo?
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Valter da Rosa Borges

Cai chuva do céu cinzento
Que não tem razão de ser.
Até o meu pensamento
Tem chuva nele a escorrer.
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Tenho uma grande tristeza
Acrescentada à que sinto.
Quero dizer-ma mas pesa
O quanto comigo minto.
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Porque verdadeiramente
Não sei se estou triste ou não,
E a chuva cai levemente
Dentro do meu coração.
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Fernando Pessoa

ÍCARO
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O sol dos Sonhos derreteu-lhe as asas.
E caiu lá do céu onde voava
Ao rés-do-chão da vida.
A um mar sem ondas onde navegava
A paz rasteira nunca desmentida...
.
Mas ainda dorida
No seio sedativo da planura,
A alma já lhe pede impenitente,
A graça urgente
De uma nova aventura.
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Miguel Torga

A METAMORFOSE
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Os lábios virgens se fizeram rosas
e abriram numa tarde de verão
a procura dos beijos transviados
pelo instante jamais acontecido.
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E o mistério da noite sucedeu...
Ò, rosas, que eram lábios e eram virgens!
Tinham o frescor das coisas desvendadas,
tinham beijos de orvalho nas corolas...
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Valter da Rosa Borges

TEIA DE ARANHA
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Teci durante a noite a teia astuciosa
Dum poema.
Armei o laço ao sol que há-de nascer.
Rede frágil de versos,
É nela que o meu sono se futura
Eterno e natural,
Embalado na própria sepultura.
Vens ou não vens agora, astro real,
Doirar os fios desta baba impura?
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Miguel Torga

HÁS-DE SER AVE...
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Hás-de ser ave
um dia,
quando as águas
cobrirem tudo o mais
e somente restar,
como se fosse um cais,
a nesga de um olhar
para poisar...
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Albino Santos

OLHANDO-SE
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O espelho enche-se com a tua
imagem; e queria tirá-lo da tua
mão, e levá-lo comigo, para
que o teu rosto me acompanhe
onde quer que eu vá.
.
Mas sem ti, o espelho
fica vazio; e ao olhá-lo, vejo
apenas o lugar onde estiveste, e
os olhos que os meus olhos procuram
quando não sei onde estás.
.
Por que não fechas os olhos
para que o espelho te prenda, e
outros olhos te possam guardar,
para sempre, sem que tenham de olhar,
no espelho, o rosto que eu procuro?
.
Nuno Judice

O POEMA
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A tarde cai,
silenciosa,
morosa...
.
Na alma do poeta,
o poema,
estranha rosa
rubra e preta,
abre...
.
Saul Dias

MÃOS
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Longas de desejo
Frescas de abandono
Consumidas de espanto
Inquietas de tocar e não prender.
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Sophia de Mello Breyner Andersen

TRAPEZISTA
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A trapezista brinca no balanço
toda vestida de branco
e braceletes no braço.
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Não tem medo a trapezista
salta, gira e desafia,
seu corpo miúdo parece
um simples traço no espaço.
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Roseana Murray

AMEI TANTO
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Nunca fui covarde
Mas agora é tarde
Amei tanto
Que agora nem sei mais chorar
.
Vivi te buscando
Vivi te encontrando
Vivi te perdendo
Ah, coração, infeliz até quando?
Para ser feliz
Tu vais morrer de dor
.
Amei tanto
Que agora nem sei mais chorar
.
Nunca fui covarde
Mas agora é tarde
É tarde demais enfim
A solidão é o fim de quem ama
A chama se esvai, a noite cai em mim
.
Vinicius de Moraes

quarta-feira, 22 de setembro de 2010


NA PRAIA
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Seguindo o vôo da gaivota, corria
a menina e sorria,
a fugir da maré cheia,
pés nus na areia.
Corria contra o vento
a gritar seu pensamento :
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Quero asas para voar !
Para voar sobre o mar !
.
Lá bem longe, no horizonte,
há navios a navegar...
Minha alma não resiste,
quero saber o que existe
do outro lado do mar !
.
Como a gaivota, quero voar !
Quero voar sobre o mar !
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Rui Ribeiro Couto

PONTO DE PARTIDA
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Parte do porto
do próprio ser
o itinerário
do conhecer.
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Em nós mesmos navegamos.
Somos barcos e marinheiros,
continentes e oceanos.
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Helena Kolody

UMA COR
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Se eu tivesse que escolher uma cor,
Escolheria o vermelho do sol nascente,
Com a vivacidade do fogo
E a violência do sangue.
O vermelho saboroso dos morangos maduros,
O vermelho alegre dos biquinhos de lacre
Ou fugidio como o das carpas malhadas.
Se eu pudesse colorir minha vida,
Eu a salpicaria de vermelho,
Pois a quero intensa e plena,
Inda que breve,
Um só pinguinho de vermelho bastaria
Para dar sentido ao cinzento arrastar-se
das intermináveis horas
aprisionadas na ampulheta da memória.
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Rui Ribeiro Couto

A ESTRADA
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A porta parece com a dona:
só abre por dentro,
não é preciso bater,
só batucar com sentimento.
Uma mulher, meu amigo...
O que é uma mulher, meu amigo?
Senão uma casa, um lar,
senão uma estrada a raiar?
(...)
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Elisa Lucinda

ACORDO DE NOITE
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Acordo de noite subitamente,
E o meu relógio ocupa a noite toda.
Não sinto a Natureza lá fora.
O meu quarto é uma cousa escura com paredes vagamente brancas.
Lá fora há um sossego como se nada existisse.
Só o relógio prossegue o seu ruído.
E esta pequena cousa de engrenagens que está em cima da minha mesa
Abafa toda a existência da terra e do céu...
Quase que me perco a pensar o que isto significa,
Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite com os cantos da boca,
Porque a única cousa que o meu relógio simboliza ou significa
Enchendo com a sua pequenez a noite enorme
É a curiosa sensação de encher a noite enorme
Com a sua pequenez...
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Fernando Pessoa

CIRANDA DO ECO
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A luz do teu olhar - ah, me fascina!
Sina minha amar - te doidamente!
Mente quem diz que o amor não é eterno.
Terno e doce e belo é este anelo,
Elo que nos une eternidade afora,
Fora do tempo comum dos mortais.
Tais encantos tem a nossa jornada,
Nada se compara à luz do teu olhar,
Olhar o teu que - ah! me fascina!
Sina minha amar - te doidamente...
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Rui Ribeiro Couto

CATADORA DE CONCHAS
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O mar foi generoso esta manhã
Despejou no fim da praia
- cidadão civilizado –
o seu lixo reciclável.
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Folhas, gravetos, frutos
Da tempestade noturna
E centenas de milhares
De pequeninos tesouros
.
Catadora de conchas
Um tanto arqueóloga
Acho um vidro aqui
Um caco de argila acolá
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Enquanto remexo as conchas
Separo as cores e formas
De todos os tamanhos
.
As ondas cantam mais alegres
Banhando este cemitério;
Entre sussurros e risos,
Contam estórias de mistérios.
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Anos atrás eu trazia
Crianças com seus baldinhos.
Certa vez apanhamos
Pequeninas e delicadas
Conchinhas cor de rosa
Que lavamos e secamos ao sol;
Depois fomos para casa
Acabar a brincadeira.
Em uma tampa de madeira
Colei uma gravura bonita
Escolhida pelas meninas;
Quando secou, ao redor dela,
Espalhamos conchas belas
Agrupadas com tal arte
Que imitavam rosinhas -
Cada qual fez sua parte
Num mimo pra vovozinha
.
Isto foi há muito tempo.
Neste momento
As meninas já cresceram
E esqueceram.
Eu é que viro menina
E com leves movimentos
Mergulho as mãos na água morna
E penetro no universo
Que ora canto em meus versos.
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Rui Ribeiro Couto

AH, MEU AMADO!
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Ah, meu amado, que lábios os teus ,
Em que sorvi delícias e alegria!
Ah, meu amado, que braços os teus,
Que me aconchegavam todo o dia!
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Ah, meu amado, que mãos as tuas,
Às quais eu me entregava, nua !
Ah, meu amado, que coração o teu,
Que me traístes, que me traístes!
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E, cinicamente, me sorristes...
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Rui Ribeiro Couto

O COMBATE
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Na rede, a menina
Embala o gatinho
Tão leve, tão fofo, quase que só pêlo.
A menina ri
Das mordidas que não machucam
E das lambidas ásperas e quentes.
O gatinho arranha.
Suas garras frágeis
Só produzem cócegas.
A menina ri
Embalando o gatinho
Que sente o calor dela e se aconchega,
Fecha os olhos e adormece, enfim.
A menina domou sua primeira fera.
Seu coração amoroso
Nem percebeu o inimigo.
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Rui Ribeiro Couto

PAPOILAS
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estou opiada de ti
e percorres-me os nervos todos
com papoilas borboletas vermelhas
o meu corpo entrança-se de sonhos
e sente-se caminhando por dentro
.
aspiro-te
como se me faltasse o ar
e os perfumes dançam-me
.
qualquer coisa como uma droga bem forte
corpo e alma
rezam pequenas orações
gestos ritmados ao abraçar-te como que abraça
sonhos
.
coisa estranha
opiada me preciso ou apenas vestida de papoilas e
muito sol com luas por dentro
.
para poder mastigar estes sonhos
reais como mandrágoras
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Ana Mafalda Leite

AS POUCAS PALAVRAS
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Foi um dia, e outro dia, e outro ainda.
Só isso: o céu azul, a sombra lisa,
o livro aberto.
E algumas palavras.
Poucas, ditas como por acaso.
Eram contudo, palavras de amor.
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Não propriamente ditas, antes adivinhadas.
Ou só pressentidas.
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Como folhas verdes de passagem.
Um verde, digamos, brilhante,
de laranjeiras.
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Foi como se de repente chovesse:
as folhas, quero dizer, as palavras brilharam.
Não que fossem ditas,
mas eram de amor, embora só adivinhadas.
.
Por isso brilhavam.
Como folhas molhadas.
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Eugênio de Andrade

Hoje eu queria estar entre as nuvens,
na velocidade das nuvens,
na sua fragilidade,
na sua docilidade de ser e deixar de ser.
Livremente
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Cecília Meireles
In "Compensação"

É OUTONO...
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Folhas pálidas
desprotegidas ao chão
Ouço o ruído frio das árvores
junto ao riacho
Ouço uma voz
Uma doce voz
Parece vir dos céus...
Preciso de silêncio para ouvi-la melhor
Preciso de silêncio para quebrantar-me
Preciso de silêncio para renascer
Porque hoje é outono.
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Arnalda Rabelo