ESTUDO DE NU
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Essa linha que nasce nos teus ombros,
Que se prolonga em braço, depois mão,
Esses círculos tangentes, geminados,
Cujo centro em cones se resolve,
Agudamente erguidos para os lábios
Que dos teus se desprenderam, ansiosos.
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Essas duas parábolas que te apertam
No quebrar onduloso da cintura,
As calipígias ciclóides sobrepostas
Ao risco das colunas invertidas:
Tépidas coxas de linhas envolventes,
Contornada espiral que não se extingue.
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Essa curva quase nada que desenha
No teu ventre um arco repousado,
Esse triângulo de treva cintilante,
Caminho e selo da porta do teu corpo,
Onde o estudo de nu que vou fazendo
Se transforma no quadro terminado.
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José Saramago
FIM E RECOMEÇO
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Não pode ser luar esta brancura
Nem aves batem asas sobre o leito
Neste quebrar de corpos fatigados
Será em mim o sangue que murmura
Em ti serão as luas do teu peito
Nos jogos do amor recomeçados
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José Saramago
ARTE DE AMAR
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Metidos nesta pele que nos refuta,
Dois somos, o mesmo que inimigos.
Grande coisa, afinal, é o suor
(Assim já o diziam os antigos):
Sem ele, a vida não seria luta,
Nem o amor amor.
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José Saramago
CORPO-MUNDO
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Que caminhos do teu corpo não conheço
À sombra de que vales não dormi,
Que montanhas não escalei, que lantejoulas
Não abarquei nos olhos dilatados,
Que torrentes não passei, que rios fundos
A nudez do meu corpo não transpôs,
Que praias perfumadas não pisei,
Que selvas e jardins, que descampados ?
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José Saramago
SILÊNCIO
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Para caminhar
sobre a delicada ponte
que leva aos olhos do outro,
todo silêncio é pouco.
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Para ouvir a música
que se desprende
de todas as coisas belas,
todo silêncio é pouco.
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Para sentir na pele
o veludo de um jardim,
quando a noite envolve o mundo
em sua rede de estrelas,
todo silêncio é ouro...
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Para entender,
palavra por palavra,
a voz que vem do coração,
todo o silêncio.
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Roseana Murray
MEU CORAÇÃO
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Meu coração,
francamente não te entendo
Estás localizado
abaixo da minha cabeça
e, no entanto, estás sempre voando
enquanto a minha cabeça
fica sempre com os pés no chão
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Caminhas ao lado
das minhas melhores emoções
mas, muitas vezes,
complicas a minha vida
quando andas de braços dados
com as minhas adolescentes paixões
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Toma jeito
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Não
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... continua louco
.
São as tuas loucuras
que me trazem a felicidade
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Orlando Vaz Carneiro
IDENTIDADE
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Preciso ser um outro
para ser eu mesmo
.
Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta
.
Sou pólen sem insecto
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Sou areia sustentando
o sexo das árvores
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Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro
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No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço
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Mia Couto
FORMA DE INOCÊNCIA
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Hei-de morrer inocente
exactamente
como nasci.
Sem nunca ter descoberto
o que há de falso ou de certo
no que vi.
Entre mim e a Evidência
paira uma névoa cinzenta.
Uma forma de inocência,
que apoquenta.
Mais que apoquenta:
enregela
como um gume
vertical.
E uma espécie de ciúme
de não poder ver igual.
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António Gedeão
SOBRE O ABRAÇO
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O melhor do abraço
é o charme de fazer
com que a eternidade
caiba em segundos.
A mágica de possibilitar
que duas pessoas visitem o céu
no mesmo instante.
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Ana Jácomo
O CÍRCULO...
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O círculo é a forma eleita
É ovo, é zero.
É ciclo, é ciência.
Nele se inclui todo o mistério
E toda a sapiência.
É o que está feito,
Perfeito e determinado,
É o que principia
No que está acabado.
A viagem que o meu ser empreende
Começa em mim,
E fora de mim,
Ainda a mim se prende.
A senda mais perigosa.
Em nós se consumando,
Passando a existência
Mil círculos concêntricos
Desenhando.
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Ana Hatherly
CORPO ADENTRO
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Teu corpo é canoa
em que desço
vida abaixo
morte acima
procurando o naufrágio
me entregando à deriva.
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Teu corpo é casulo
de infinitas sedas
onde fio
me afio e enfio
invasor recebido
com licores.
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Teu corpo é pele exata para o meu
pena de garça
brilho de romã
aurora boreal
do longo inverno.
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Marina Colasanti
A verdade era bela,
como vinha nos livros.
À beirinha das águas
a verdade era bela.
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Os que deram por ela
abriram-se e contaram
que a verdade era bela.
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Quase todos se riam.
Os que punham nos livros
que a verdade era bela,
muito mais que os outros.
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A verdade era bela
mas doía nos olhos
mas doía nos lábios
mas doía no peito
dos que davam por ela.
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Sebastião da Gama
O vento voa,
a noite toda se atordoa,
a folha cai.
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Haverá mesmo algum pensamento
sobre essa noite? sobre esse vento?
sobre essa folha que se vai?
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Cecília Meireles
Gosto da gota d'água que se equilibra
na folha rasa, tremendo ao vento.
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Todo o universo, no oceano do ar, secreto vibra:
e ela resiste, no isolamento.
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Seu cristal simples reprime a forma, no instante incerto:
pronto a cair, pronto a ficar - límpido e exato.
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E a folha é um pequeno deserto
para a imensidade do ato.
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Cecília Meireles
Somos folhas breves onde dormem
aves de sombra e solidão.
Somos só folhas e o seu rumor.
Inseguros, incapazes de ser flor,
até a brisa nos perturba e faz tremer.
Por isso a cada gesto que fazemos
cada ave se transforma noutro ser.
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Eugênio de Andrade
O dia abriu seu pára-sol bordado
De nuvens e de verde ramaria.
E estava até um fumo, que subia,
Mi-nu-ci-o-sa-men-te desenhado.
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Depois surgiu, no céu azul arqueado,
A Lua - a Lua! - em pleno meio-dia.
Na rua, um menininho que seguia
Parou, ficou a olhá-la admirado...
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Pus meus sapatos na janela alta,
Sobre o rebordo... Céu é que lhes falta
Pra suportarem a existência rude!
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E eles sonham, imóveis, deslumbrados,
Que são dois velhos barcos, encalhados
Sobre a margem tranqüila de um açude...
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Mario Quintana
In "A Rua dos Cataventos"
MULHER NA PRAIA
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Muitas vezes me tenho perguntado
quem será esta mulher só
que todas as tardes chega à praia
e, sentada sob a sombrinha,
fica olhando o mar.
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Talvez busque no azul
resposta para a solidão.
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Terá sido criança, amou e foi amada,
mas é claro que sobre isso não sei nada.
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Torquato da Luz
ÀS VEZES
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Às vezes julgo ver nos meus olhos
A promessa de outros seres
Que eu podia ter sido,
Se a vida tivesse sido outra.
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Mas dessa fabulosa descoberta
Só me vem o terror e a mágoa
De me sentir sem forma, vaga e incerta
Como a água.
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Sophia de Mello Breyner Andresen
Tardes no meu jardim
tão lúcidas, quietas,
quase inquietas,
com pequeninos sóis
em cada pétala molhada,
com sombras fugidias...
(Tal os dias
sumindo-se um a um...)
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E as canções
que não foram cantadas?
E as rosas decepadas
pelo simum?
E os riscos na parede?
E a sede
numa taça vazia?
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E a noite que começa
fria, fria...!
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Saúl Dias
Já um pouco de vento se demora;
Já sua força vale a de uma mão
Nestes papéis que trago para fora,
Que o campo dá certeza e solidão.
O calor fez a casca mais delgada,
Agora colho a tarde: a vida não.
Sou como a macieira carregada:
De palavras a mais cobri o chão.
Árvores há no outono que conhecem
O toque e ardor das folhas de amanhã
E esperando-as, altas, adormecem.
Com espaço e vento nunca a vida é vã.
Eu volto à mão do outono em meus papéis.
Penso e, indiscreto, o ar remove
Estas imagens cruéis
Que a minha vida comove
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Vitorino Nemésio
A PERFEIÇÃO
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O que me tranqüiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.
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O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fração de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.
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Tudo o que existe é de uma grande exatidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exatidão
nos é tecnicamente invisível.
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O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.
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Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição.
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Clarice Lispector
DE TANTO OLHAR O SOL
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De tanto olhar o sol,
queimei os olhos,
De tanto amar a vida enlouqueci.
Agora sou no mundo esta negrura.
À procura
Da luz e do juízo que perdi.
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Miguel Torga
RISO
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era como ele me fazia rir
não o riso, mas era como
ele me afundava as mãos
e me torturava de cócegas
nunca foram as gargalhadas
era essa maneira única em
que ele me tirava todo ar
e me matava por um triz
era como me fazia tão feliz
antes e depois de um sorriso.
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Cáh Morandi
pessoas deviam poder evaporar
quando quisessem
não deixar por aí
lembranças, pedaços, carcaças,
gotas de sangue, caveiras, esqueletos
e esses apertos no coração
que não me deixam dormir...
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Paulo Leminski
In "O Ex-estranho"
BILHETE
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Não te sei dizer mais.
Depois de tantos versos,
Que te baste o silêncio
Dum poeta ardente,
Que sempre, naturalmente,
Foi além das palavras
Do amor, amando.
Que, em cada beijo,
Selava os lábios que o nomeavam.
Que aprendeu, a sofrer,
Que tudo acontecia
No acontecer.
Que, até nas horas de evasão, sabia
Que a verdadeira vida vive-se a viver.
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Miguel Torga
A CHUVA CHOVE
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A chuva chove mansamente ... como um sono
Que tranqüilize, pacifique, resserene ...
A chuva chove mansamente ... Que abandono!
A chuva é a música de um poema de Verlaine ...
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E vem-me o sonho de uma véspera solene,
Em certo paço, já sem data e já sem dono ...
Véspera triste como a noite, que envenene
A alma, evocando coisas líricas de outono ...
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... Num velho paço, muito longe, em terra estranha,
Com muita névoa pelos ombros da montanha ...
Paço de imensos corredores espectrais,
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Onde murmurem velhos órgãos árias mortas,
Enquanto o vento, estrepitando pelas portas,
Revira in-fólios, cancioneiros e missais ...
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Cecília Meireles
In "Nunca Mais e Poema dos Poemas"
Eu entro nesse barco, é só me pedir.(...).
Mas você tem que remar também.
Eu desisto fácil, você sabe.
E talvez essa viagem não dure mais do que alguns minutos,
mas eu entro nesse barco, é só me pedir.
Perco o medo de dirigir só pra atravessar o mundo pra te ver todo dia.
Mas você tem que me prometer que vai remar junto comigo.
Mesmo se esse barco estiver furado eu vou, basta me pedir.
Mas a gente tem que afundar junto e descobrir que é possível nadar junto.
Eu te ensino a nadar, juro!
Mas você tem que me prometer que vai tentar,
que vai se esforçar, que vai remar enquanto for preciso, enquanto tiver forças!
Você tem que me prometer que essa viagem não vai ser a toa, que vale a pena.
Que por você vale a pena.
Que por nós vale a pena.
Remar.
Re-amar.
Amar..."
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Caio Fernando de Abreu
SONETO ANTIGO
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Responder a perguntas não respondo.
Perguntas impossíveis não pergunto.
Só do que sei de mim aos outros conto:
de mim, atravessada pelo mundo.
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Toda a minha experiência, o meu estudo,
sou eu mesma que, em solidão paciente,
recolho do que em mim observo e escuto
muda lição, que ninguém mais entende.
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O que sou vale mais do que o meu canto.
Apenas em linguagem vou dizendo
caminhos invisíveis por onde ando.
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Tudo é secreto e de remoto exemplo.
Todos ouvimos, longe, o apelo do Anjo.
E todos somos pura flor de vento.
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Cecília Meireles
"Depois que cansei de procurar
aprendi a encontrar.
Depois que um vento
me opôs resistência,
velejo com todos os ventos."
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Friedrich Nietzsche
Onde quer que o encontres -
escrito, rasgado, ou desenhado:
na areia, no papel, na casca de
uma árvore, na pele de um muro,
no ar que atravessa de repente a tua voz,
na terra apodrecida
sobre o meu corpo - é teu,
para sempre, o meu nome.
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Maria do Rosário Pedreira
in "Nenhum Nome Depois"
ÚNICA PAISAGEM
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"Agora há uma dor que pousa nas palavras.
Não as diga - um nome basta para
dividir o coração. Se me esqueceste entre
um livro e outro, finge que não sei; despede-te
de mim como uma lâmpada antiga, deixa que
a tua sombra seja a minha única paisagem "
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Maria do Rosário Pedreira
SAUDADES
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Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura
sói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés
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Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas
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Seja eu de novo a tua sombra, teu desejo,
tua noite sem remédio
tua virtude, tua carência
eu
que longe de ti sou fraco
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trémula, raiz exposta
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Traz
de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono
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Mia Couto
LITERATURA
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"O fascínio pelas histórias resulta
dessa absoluta necessidade de brincar.
Como todos os animais caçadores
carecemos dessa aprendizagem ritualizada.
Como um gato perante o novelo,
assim estamos ante o texto que nos encanta."
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Mia Couto
QUE SEJA DOCE...
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"Então, que seja doce.
Repito todas as manhãs,
ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias,
bem assim, que seja doce.
Quando há sol,
e esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia,
contemplando as partículas de poeira soltas no ar,
feito um pequeno universo;
repito sete vezes para dar sorte:
que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante.
Mas, se alguém me perguntasse o que deverá ser doce,
talvez não saiba responder.
Tudo é tão vago como se fosse nada."
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Caio Fernando Abreu
in"Os dragões não conhecem o paraíso"
"Em meados de junho
os jacarandás de Lisboa estão em flor,
a sua luz fende a pupila,
acaricia o dorso da sombra.
É então que – sei lá se pela última vez –
a inocência volta a entrar na minha vida.
Olhos, mãos, alma, tudo é novo –
recomeço a prodigalizar alegria,
uma alegria que não procura palavras
porque o seu reino não é o da expressão.
Digamos que esta nova experiência,
a que não quero dar nome,
não se preocupa em interrogar,
talvez por já não ser tempo de dúvidas,
ou então por não lhe dizerem respeito
essas verdades últimas, cegas como facas.
Não é um poema de obediência
o que me proponho nestas linhas;
trata-se de outra coisa:
levar à boca fresca do ar
o ardor das areias queimadas.
Mas sem palavras, sem palavras."
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Eugénio de Andrade
SEM TI
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E de súbito desaba o silêncio.
É um silêncio sem ti,
sem álamos,
sem luas.
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Só nas minhas mãos
ouço a música das tuas.
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Eugénio de Andrade
PRECE
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Peço o meu pão
e a certeza de poder comê-lo
sem constrangimento.
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E, se outra coisa peço, não
será mais que a tua mão no meu cabelo,
quando me toma o desalento.
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Torquato da Luz
in "Voz Suspensa"
SACODE AS NUVENS
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Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as aves que te levam o olhar.
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.
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Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
Mesmo que os meus gestos te trespassem
De solidão e tu caias em poeira,
Mesmo que a minha voz queime o ar que respiras
E os teus olhos nunca mais possam olhar.
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Sophia de Mello Breyner Andresen
A FLOR
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É uma flor perdida entre alvuras e brumas
que eu persigo,
flor obscura nascida em teu corpo de neve e de sol
e escondida de todos, menos do amor...
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Encontro-a depois da escalada entre o céu e a queda.
E quando a tenho em meus lábios, agarrando-me a ti
despenco no abismo.
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J. G. de Araujo Jorge
in "A Sós"
ESTADO DE ALMA
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Se eu fosse um pintor,
pintaria este dia de chuva...
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Depois
me mudaria
pro meu quadro...
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J. G. de Araújo Jorge
in "A Sós"
ANTES QUE
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Preciso ler um bom poema antes
de dormir
antes que a noite encerre o
diário inventário das lembranças antes
que o sono cale a boca e olhar,
antes que o prumo caia
horizontal.
Preciso ler um bom poema antes
que seja tarde
que fique escuro
que chegue o frio.
Ler um bom poema
antes que a noite venha
e escreva o seu.
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Marina Colassanti
O RISO
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Aquele riso foi o canto célebre
Da primeira estrela, em vão.
Milagre de primavera intacta
No sepulcro de neve
Rosa aberta ao vento, breve
Muito breve…
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Não, aquele riso foi o canto célebre
Alta melodia imóvel
Gorjeio de fonte núbil
Apenas brotada, na treva…
Fonte de lábios (hora
Extremamente mágica do silêncio das aves).
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Oh, música entre pétalas
Não afugentes meu amor!
Mistério maior é o sono
Se de súbito não se ouve o riso na noite.
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Vinicius de Moraes